quarta-feira, 17 de abril de 2024

O assassinato da própria empresa

Olá. Bom todo dia!

A missão: Entregue os anéis para salvar os dedos!

Hoje vou contar uma história pessoal. Dolorida e dolorosa. Resolvi contar essa história agora porque alguns (espero que muito poucos) empresários talvez passem por situação semelhante. Vou contar à minha experiência ou melhor, para ser bem específico, vou relatar como praticamente assassinei à primeira empresa que criei e quase todo meu futuro.

Estou na terceira iniciativa como empreendedor. Na primeira eu deixei quebrar o negócio, mas não fali. Na segunda experiência à situação foi diferente da primeira, pois eu resolvi sair do negócio por vontade própria logo que percebi que estava perdendo energia física e mental a cada dia que passava. Assim, de forma pensada, busquei alternativas até o momento em que decidi por vender uma parte da empresa e encerrei as minhas atividades no setor.
Vender um empreendimento é uma espécie de divórcio consensual. Quando isso é associado ao encerramento das atividades torna-se o caminho menos traumático, mesmo sendo um processo burocrático lento, longo e oneroso. Também por isso que à experiência da falência (sem falir) é frustrante, degradante e tortuosa porque fica faltando um momento final.

Na experiência de falir (sem falência) eu perdi os anéis e machuquei profundamente os dedos. Demorei demais a entender o cenário em que estava inserido. As marcas perduram e me fazem lembrar das lições. Lições do que não vi, pois não sabia para onde olhar. É sobre essas lições que vou escrever agora.
É um texto um pouco diferente. Vou fazer um comparativo descrevendo o que eu vivia naquela época e o que aprendi, tempos depois, quando num processo de conhecimento pessoal foram analisados alguns pontos do passado, sob uma nova perspectiva, e os reflexos disso como vivência adquirida. Espero que ajude quem precisar de ajuda.




O relato é específico e centrado no contexto das dificuldades criadas sem pormenorizar o que motivou o problema (isso talvez ainda vire um livro). Para auxiliar no entendimento do texto vou usar “dono” para definir o passado e vou utilizar “mentor” para mostrar uma opinião objetiva, um entendimento maior sobre as ações ou atitudes.

dono > Como todo pequeno empresário eu respondia pelo financeiro, administrativo e comercial. A partir de um determinado momento, com 3 para 4 anos de funcionamento da empresa e eu com 27 anos de idade, todo dia era uma aventura quase épica com alguns momentos de alívio imenso por ter conseguido efetuar um pagamento. Misturava tudo e não usava nem agenda, não lia nada além de jornal. Buscava ansiosamente uma forma de prospecção de um novo negócio na expectativa de conquistar um grande cliente, o famoso salvador da pátria, mas de prático fazia quase nada.

mentor > Não foi formalizado nenhum plano de negócio; não foi elaborada uma estratégia clara; não foi efetuado nenhum planejamento comercial; não existia uma rotina financeira e, até por isso, à busca pelo salvador da pátria, ou o pequeno conforto ao efetivar algum pagamento, apontavam para uma situação geral muito perigosa. Aos 27 anos de idade à confiança era apenas na capacidade de resolver problemas. Não foi aberto um único livro por 8 anos e, assim, ficou evidente que à instrução recebida na faculdade não foi ampliada com mais nada, principalmente algo que trouxesse alguma nova capacidade de gestão.

dono > Em todos os anos de existência da empresa eu nunca tive um valor definido como ‘pró-labore’, o famoso salário do empreendedor. Eu pegava dinheiro ‘dentro’ dos gastos da empresa e não sabia exatamente quanto.

mentor > Esse erro cria uma dificuldade de perceber à situação geral porque demora para o aperto chegar no dinheiro pessoal. O que faltava, faltava à empresa e não exatamente ao dono. Por mais que o gasto fosse limitado ao que à geração de caixa, do pequeno negócio, produzia essa limitação era menor para o dono do que para a empresa. Isso não permitiu sentir a dificuldade crescer e criou uma dupla fantasia: 1ª) que a empresa não gerava lucro; 2ª) que o dono não recebia dinheiro do negócio.

dono > Era comum eu fazer concessões aos clientes por medo de perdê-los, pois os clientes pagavam pontualmente. Praticamente abdiquei de apurar os custos da operação. Qualquer reclamação de cliente era considerada como erro interno independente de qualquer análise. O que importava era não ter reclamações ou correr qualquer risco de perder um contrato. Quando mais próximo do quase fim eu chegava mais essa pressão era sentida.

mentor > Levar ao extremo a expressão ‘o cliente sempre tem razão’ custa muito caro, e a razão disso é que o cliente rapidamente percebe que até as solicitações menos criteriosas são aceitas e, assim, passam a exigir cada vez mais, inclusive indo além do que haviam contratado inicialmente. A relação de subserviência negocial que começa com clientes quase sempre é estendida às outras áreas.

dono > O primeiro boleto não pago que foi protestado veio como um soco no estômago. Fiquei sem fechar os olhos por 2 dias e, depois, não consegui dormir direito enquanto não paguei a conta no cartório e limpei o nome da empresa, inclusive com certidão negativa de débito. Esta luta, em seguida, virou uma rotina diária por bastante tempo. Algumas vezes um boleto não pago era protestado ou um cheque sem fundos era devolvido, mas a reversão ocorria em pouco tempo, até que chegou o fatídico dia do primeiro cheque sustado. Parece que nesse instante as coisas mudaram de patamar e eu aceitei que à situação seria diferente. Eu não tinha mais a obstinação em resolver rapidamente.

mentor > Como a capacidade de gestão não foi aprimorada e, tampouco, um mínimo controle foi organizado era evidente que os problemas econômicos iriam produzir graves disfunções financeiras. Na medida que o laço aperta é que se faz necessário conhecimento para tomar decisões resolutivas e, é por isso também, que o balancete contábil é de suma importância. Sem se ter a visão do real tamanho do problema que se tem pela frente fica difícil escolher um caminho que conduza à solução. Os sintomas como à asfixia financeira, normalmente, são os últimos que aparecem e eles só aparecem porque à doença econômica tomou conta do resto todo. Tomou conta inclusive das pessoas que precisam tomar decisões. A gestão nesse ponto torna-se extremamente perigosa porque temos o fator psicológico sendo esgaçado. Neste ponto de ruptura é possível, inclusive, que ramificações com outras desordens psicológicas avancem ao campo mental ou emocional. É preciso muita atenção com os pensamentos, mais especificamente sobre o tipo e quantidade de repetições em uma mesma linha.

dono > Passei a ser totalmente tolerante com falhas de funcionários. Faltas ao trabalho ou danos aos equipamentos e até perda de produtos eram desconsideras, esquecidas ou perdoadas.

mentor > É claro que à asfixia financeira chegou forte nas trincheiras internas da empresa, pois quando falta dinheiro essa falta não é apenas para o pagamento de fornecedores. A organização de uma atividade produtiva com pessoas necessita de obrigações assumidas e cumpridas por ambas as partes. Da parte do contratante é esperado o preparo suficiente para ordenar, normatizar e oferecer condições de execução adequadas, sendo uma das principais o cumprimento dos acordos financeiros firmados. Quando à ineficácia da gestão ocasiona inadimplemento no pagamento de salários perde-se uma condição vital de comando e assume-se, invariavelmente, um papel condescendente e complacente ao ambiente disfuncional criado.

dono > Deixei de pagar os impostos no vencimento. No primeiro momento pagava em atraso, mas logo deixei de pagar os impostos de forma total.

mentor > Essa é a decisão mais fácil de ser tomada, principalmente, porque desconhece-se os reflexos futuros dela. O governo, como um todo, cobra demais é verdade. Só que essa é a lei. E o empresário que fica a margem da lei não tem um futuro promissor. No caso específico, onde as dificuldades aumentam, a única forma de provar que a inadimplência dos impostos foi uma necessidade condizente com as dificuldades enfrentadas pela empresa é quando a contabilidade, através dos registros regulares das fatos documentados, produz o balanço patrimonial que reflete essa situação de forma cristalina. Caso contrário o rolo será grande, longo e penoso.

dono > Com as sucessivas decisões erradas eu acabei consumindo um apartamento de 2 dormitórios; o meu crédito todo; o crédito de um familiar próximo; além de pegar empréstimo com um parente de outro familiar. Tudo deu errado nessas operações.

mentor > Consumir os anéis e machucar profundamente os dedos. O ponto onde usar patrimônio, crédito ou amizades é indicado fica situado bem antes da dificuldade econômica. Essa leitura é facilitada analisando à consequência sabida é claro, mas é preciso sempre pensar na consequência caso contrário não existe gestão. Sempre que um investimento é efetuado numa empresa criamos a probabilidade de que à empresa tenha condição de gerar retorno. A expectativa de retorno é diferente da esperança de salvação. O capital queimado na salvação de uma empresa precisa, antes de tudo, ser muito muito bem calculado. E o pior é que o cenário mais comum, muito comum mesmo, é errar na necessidade de dinheiro por desconhecimento daquela ‘visão do real tamanho do problema que se tem pela frente’.

dono > Na fase de tentativa e erro eu desativei uma empresa, aquela que não fali, e constituí outra (essa era uma alternativa muito usada naquela época) em nome de familiares.

mentor > Tomar uma decisão dessas sem nunca ter avaliado um único balancete contábil da empresa que será desativa é o primeiro erro gigantesco. Não saber à situação real dessa empresa é outro erro imenso. Uma situação problemática não deixa de ser um problema simplesmente porque foi posta fora de uso. À situação difícil continua viva e cobrando atenção diária e é lógico que seria, em algum momento futuro, transferida para o novo CNPJ com agravantes de responsabilidade indevidas. Não dar o fim legal para o CNPJ é um erro que marca com reflexos profundos o futuro e que prejudicará extremamente alguma possível experiência posterior. Se à empresa estava quebrada, se o dono também estava quebrado era preciso ter tido à condição de pedir falência de forma correta e acabar com os problemas no período apropriado. Isso é uma decisão para quem está preparado para gerir o negócio e suas consequências.

dono > Dediquei um tempo excepcional para desenvolver um sistema informatizado de controle operacional para facilitar o funcionamento da parte vital do negócio e facilitar o atendimento aos clientes. Obtive êxito, mas não adiantou nada.

mentor > Como é evidente na definição de encargos inicialmente exposta que o dono não desempenhava função operacional fica claro que algum outro familiar, ou pessoa muita próxima, detinha essa atividade. As pessoas operacionais de uma empresa são fundamentais e tudo que puder ser feito para conceder condições de eficiência deve ser feito. À condição econômica crítica produz os piores resultados nas pessoas mais próximas, seja pela inadequada remuneração financeira ou pelo excesso de trabalho. A compensação com melhorias operacionais nem sempre chega no tempo certo para auxiliar na resolução dos problemas criados anteriormente.

dono > O final do empreendimento chegou quando recebi uma proposta de compra dos contratos. A proposta incluía manter toda a equipe. Aceitei. Por 90 dias estive presente e acompanhei à transição.

mentor > Foi talvez à primeira decisão acertadamente tomada, e bem conduzida, no cenário de complicações gerais. Evitar ainda mais problemas futuros, com as novas variantes criadas em função das pessoas inseridas no negócio, sem dele participar, foi o melhor termo ao empreendimento.

dono > Por muito tempo sofri por não saber como eu havia falhado e deixado os acontecimentos controláveis tomarem à dimensão absurda que tomaram.

mentor > Uma empresa não fali em um dia, salvo um incidente natural catastrófico ou similar econômico (a atual pandemia). Uma sucessão de pequenos deslizes, desatenções e erros primários é o que conduzem uma empresa para a insolvência. Não existe um momento ou um fato; não é um ato ou um contrato; tampouco será um título não pago ou algo similar; quando olhamos para o cenário exposto é fácil verificar que foi a soma de tudo, o conjunto dos elementos, que sucessivamente cavaram o buraco dia a dia. Mas todo o complexo ecossistema de uma empresa tem uma dependência fundamental vinculada a capacidade de gestão do seu dono, disso é impossível fugir e é indevido relevar. A capacidade, mesmo quando for nata, deve ser constante e permanentemente aprimorada.

Em linhas gerais essa é uma das formas de assassinar uma empresa. Existem outras é evidente, mas uma coisa é bem clara: nunca, jamais, em momento algum uma empresa busca o próprio fim. A empresa é conduzida para isso.

Eu sou o dono que viveu tudo isso e, também, sou o mentor que foi adquirir o conhecimento necessário e hoje tem à experiência para encontrar soluções; experiência que fez uma falta danada naquele período. Como eu queria ter ouvido conselhos; como eu precisava ter ouvido palavras fortes com sinais de alerta. Como eu precisava pensar no futuro como um todo e não apenas em uma parte.

Conte comigo

*** Publicado em 2020 na época da pandemia ***